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Ao longo de 89 anos
de vida, o padre Antonio Vieira produziu mais de 200 sermões, declamados, entre
outras cidades, em Salvador (BA), São Luís (MA), Lisboa, Cabo Verde e Roma. Em
diferentes ocasiões, o religioso se manifestou a respeito dos escravos de
origem africana. Num momento histórico em que era comum considerar os negros
inferiores, declarou que “cada um é da cor do seu coração”. E lembrou que segundo
a tradição, dois dos três reis magos que visitaram o recém-nascido Jesus eram
negros.
Não há sinais de racismo, portanto, na obra de Vieira. Ainda assim, uma lei municipal aprovada pela Câmara de Vereadores do Rio de Janeiro autoriza a retirada de imagens em homenagem a figuras históricas de relevo.
“Não vamos mais aceitar a naturalização e, pior, a exaltação de figuras que promoveram o racismo e o fascismo ao longo da história e hoje têm seus crimes atenuados pelo revisionismo praticado pela extrema direita”, declarou a coautora do projeto de lei, a vereadora Mônica Benício, do Partido Socialismo e Liberdade (PSOL).
A primeira imagem a
ser submetida à nova lei é uma estátua do religioso jesuíta Antonio Vieira.
Presente da Câmara Municipal de Lisboa, ela foi instalada, em 2011, no jardim
da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-RJ). Acontece que Vieira
não pode ser considerado, nem de longe, escravocrata, eugenista ou autor de
atos racistas ou lesivos aos direitos humanos.
Martírio recompensado
“Antonio Vieira
nascera em Lisboa, de gente pouco abastada, em modesta casa da rua dos Cônegos,
na vizinhança da Sé, aos 6 de fevereiro de 1608”, escreve o historiador
português João Lúcio Azevedo na biografia História de Antônio Vieira. Aos seis anos, a família partiu
para Salvador (BA), que na época abrigava, segundo Azevedo, “3 mil vizinhos
portugueses, 8 mil índios e 3 a 4 mil escravos africanos”. Educado na escola
dos jesuítas da então capital da colônia, ele a princípio era um aluno mediano,
longe do escritor e orador renomado que se tornaria.
Foi padre,
missionário e político. Mas teria considerado os africanos inferiores? O
assunto foi tema de alguns de seus sermões. Um deles, declamado em 1633 para
uma irmandade de negros devotos de Nossa Senhora do Rosário, aponta para os
sacrifícios que os escravos sofriam. Vieira tinha apenas 19 anos e estava a
dois anos de ser ordenado padre.
“Os senhores poucos,
e os escravos muitos; os senhores rompendo galas, os escravos despidos e nus;
os senhores banqueteando, os escravos perecendo à fome; os senhores nadando em
ouro e prata, os escravos carregados de ferros; os senhores tratando-os como
brutos, os escravos adorando-os e temendo-os como deuses; os senhores em pé
apontando para o açoite, como estátuas da soberba e da tirania, os escravos
prostrados com as mãos atadas atrás como imagens vilíssimas da servidão, e
espetáculos da extrema miséria”.
No discurso, ele
questiona: “Estes homens não são filhos do mesmo Adão e da mesma Eva? Estas
almas não foram resgatadas com o sangue do mesmo Cristo? Estes corpos não
nascem e morrem, como os nossos? Não respiram com o mesmo ar? Não os cobre o
mesmo céu? Não os aquenta o mesmo Sol? Que estrela é logo aquela que os domina,
tão triste, tão inimiga, tão cruel?”
Ele acaba por conclamar
a plateia escrava a ter paciência, porque seu martírio seria recompensado com a
salvação divina. O mesmo não se aplica aos senhores: “Estão açoitando
cruelmente o miserável escravo, e ele gritando a cada açoite, Jesus, Maria,
Jesus, Maria; sem bastar a reverência destes dois nomes, para moverem à piedade
um homem que se chama cristão. E como queres que te ouçam na hora da morte
estes dois nomes, quando chamares por eles? Mas estes clamores que vós não
ouvis, sabei que Deus os ouve: e já que não têm valia para com o vosso coração,
a terão sem dúvida sem remédio para vosso castigo”.
“Soberba do presente”
À parte os próprios
textos de Vieira, faz sentido buscar sinais de racismo em qualquer
europeu nascido no século 17? “Hoje em dia, há uma tendência de julgar o
passado de forma primária e simplista. É a soberba do presente, que se arvora
como juíza purificadora do passado”, responde o historiador português José
Eduardo Franco, diretor do Centro de Estudos Globais (CEG) da Universidade
Aberta, com sede em Lisboa.
“Há quatrocentos anos, no tempo de Vieira, a hierarquia de valores e o seu
quadro conceitual eram diametralmente opostos aos que hoje estruturam as nossas
sociedades democráticas”, ele prossegue. “O que precisamos, acima de tudo, é do
desenvolvimento de uma cultura crítica para compreender as figuras do nosso
passado nas suas grandezas e misérias e nas suas grandezas misturadas, muitas
vezes, com misérias, aprendendo com as suas lições para evitarmos repetir os
mesmos erros”.
No caso específico do jesuíta, faria sentido acusar o religioso? “Apesar de
o quadro conceitual de Vieira ser diferente do nosso, se lermos com atenção
toda a sua obra, o que encontramos amiúde são afirmações que hoje podemos
considerar radicalmente antirracistas”, afirma Franco, que é organizador de um livro, Cada um é
da cor do seu coração, que reúne escritos do religioso sobre o tema.
“No fim da vida, Vieira, num documento intitulado ‘Voto dos moradores de
São Paulo’, refutou os que queriam revogar as leis de proteção dos ameríndios
decretadas pelo Rei de Portugal, persuadido por Vieira, defendendo a soberania
e a liberdade das nações ameríndias. Entre os argumentos que apresentou,
destaca-se esta afirmação corajosa: ‘em termos de legitimidade de soberania,
tanto valia a coroa de ouro de um monarca europeu como a coroa de penas de um
rei ameríndio’”.
“Um grande diplomata”
A acusação contra
Vieira não é nova – aliás, ela tende a ser generalizada contra qualquer
religioso que tenha se envolvido no esforço missionário nas colônias ocupadas
por nações europeias. Em 2018, um grupo de alunos de graduação e pós-graduação atacou quadros que, por mais de três décadas,
pertenciam ao acervo Universidade Federal do Espírito Santo (UFES) e estavam
expostos nos corredores da instituição. Todas as obras faziam referência ao
religioso.
Em 2020, uma estátua
do jesuíta, que havia sido inaugurada no Largo Trindade Coelho, em Lisboa, em
2017, foi vandalizada: a palavra “descoloniza” foi pintada em vermelho.
O presidente de
Portugal, Marcelo Rebelo de Sousa, que está no posto desde 2016, reagiu na época, declarando que nunca gostou da
ideia de “queimar livros ou destruir estátuas”. Também afirmou: “Quanto ao
padre António Vieira, o que foi feito demonstrou, não só ignorância, como
imbecilidade.”
Vieira, lembrou ele,
“lutou pela independência, foi um grande diplomata, foi um homem progressista
para aquela altura, perseguido pelos colonos portugueses no Brasil, perseguido
pela corte, a certa altura, perseguido pela Inquisição”. E completou: “Foi um
homem dos maiores escritores portugueses, foi o maior orador português.
Portanto, para a sua época, este homem, que era um visionário, ser considerado
um exemplo do que se quer destruir e demolir de memória, de testemunho da nossa
História, é uma coisa imbecil”.
Na mesma época, Aldo
Rebelo, político de esquerda, filiado ao Partido Democrático Trabalhista (PDT),
ex-presidente da Câmara dos Deputados e ex-ministro da Secretaria de
Coordenação Política e Relações Institucionais, da Defesa, da Ciência,
Tecnologia e Inovação e do Esporte, escreveu um artigo em que defendia Vieira.
“Denominado pelo
poeta Fernando Pessoa imperador da Língua Portuguesa, tido por muitos como
homem mais culto de seu tempo, autor de sermões consagrados pela literatura
portuguesa, pregador convidado pelo Papa para a convertida ao catolicismo
rainha Cristina da Suécia, prisioneiro da Inquisição, acusado de ligações com o
judaísmo, expulso do Maranhão por defender os índios contra a escravidão,
Vieira teve sua estátua atacada por militantes identitários em Lisboa”.
Ele prossegue:
“Atentar contra a memória de Vieira é afrontar também a memória do
Brasil”. E critica os militantes do identitarismo que, em sua avaliação,
lideram estes ataques. “O identitarismo é uma corrente originária nos Estados
Unidos e que colonizou com ideias e dinheiro parte importante do movimento
progressista no Brasil e no mundo. O identitarismo precisa ser contido e
derrotado no Brasil como uma corrente reacionária que divide o povo”.
Procurada pela Gazeta do Povo para apontar que outras obras poderão ser removidas por força da nova lei, a vereadora Monica Benicio não se manifestou. Mas, de acordo com o jornal Folha de S.Paulo, uma lista prévia inclui uma estátua do Marechal Luís Alves de Lima e Silva, o Duque de Caxias, e do general Humberto de Alencar Castelo Branco, presidente do Brasil entre 1964 e 1967.
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