Juiz atua na fase do inquérito policial a fim de proteger os direitos individuais e a legalidade do processo
O Supremo Tribunal Federal (STF) declarou, na última quarta-feira (23), que o juiz de garantias é constitucional. O mecanismo foi introduzido em dezembro de 2019 no Código de Processo Penal (CPP). A aplicação, no entanto, foi suspensa no mês seguinte, em janeiro de 2020, por decisão do ministro Luiz Fux. Em sua argumentação, ele afirmou que faltavam dados que indicassem, “acima de qualquer dúvida razoável”, os impactos da medida no sistema judiciário.
A decisão do STF estabeleceu um prazo de 12 meses para que as legislações e os regulamentos dos tribunais sejam alterados a fim de implementar o juiz de garantias.
A medida foi elogiada por juristas e considerada fundamental para a garantia de respeito aos direitos fundamentais de acusados. Entenda o que é o juiz de garantias e qual sua importância para o sistema processual brasileiro.
O que faz um juiz de garantias?
De acordo com a legislação aprovada em 2019, o juiz de garantias é um magistrado que tem a responsabilidade de salvaguardar os direitos individuais dos investigados e a legalidade da investigação criminal na fase de inquérito policial. Isso significa que a partir do oferecimento da denúncia, quando os investigados passam à condição de réu, essa responsabilidade passa a ser do juiz de instrução e julgamento, que propriamente julga os investigados. A legislação anterior à mudança aprovada em 2019 estabelecia que um mesmo juiz participa da fase de inquérito e de julgamento, o que, para alguns especialistas, compromete a imparcialidade do julgamento.
Entre as funções descritas em lei, o juiz de garantias deve ser informado sobre a instauração de qualquer investigação criminal; decidir sobre o requerimento de prisão provisória ou outra medida cautelar, podendo prorrogá-las, revogá-las ou substituí-las; prorrogar o prazo de duração do inquérito; e determinar o trancamento do inquérito policial quando não houver fundamento razoável para sua instauração ou prosseguimento. O magistrado que exerce este posto também pode requisitar documentos, laudos e informações ao delegado de polícia sobre o andamento da investigação e julgar habeas corpus impetrados antes do oferecimento da denúncia.
Os magistrados também decidiram que o juiz de garantias deve atuar em investigações na Justiça Eleitoral. O texto aprovado em 2019 define a competência do juiz das garantias somente as infrações penais, exceto aquelas de menor potencial ofensivo. Por outro lado, o STF decidiu que o juiz de garantias não atuará em casos de competência do Tribunal do Júri – um órgão do Poder Judiciário que tem competência para julgar os crimes contra a vida – e de violência doméstica. Além disso, os ministros do STF proibiram as autoridades penais de realizarem combinados com a imprensa para a divulgação de operações.
Avanço ou retrocesso?
O juiz de garantias é considerado “um avanço importante e significativo” na visão de Tânia de Oliveira, advogada e secretária Adjunta na Secretaria-Geral da Presidência e integrante da ABJD. Ela afirma que o instrumento corrige um dos erros do Código de Processo de Penal que estabelecia, até então, o mesmo juiz para a fase de inquérito e julgamento.
“No atual formato, o juiz que conduz a investigação é o mesmo que instrui e julga. O modelo é errado, porque aumenta em muito os riscos de um julgamento parcial. O juiz de garantias corresponde ao que preconiza a Constituição Federal de 1988, assegurando o respeito aos direitos fundamentais dos investigados”, afirma.
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Segundo o advogado André Lozano, professor de direito penal e direito processual na Universidade São Judas Tadeu, o juiz de garantias serve como um instrumento de imparcialidade no Poder Judiciário. “O juiz que atuou durante o inquérito estaria contaminado pelos elementos colhidos na fase de inquérito, quando não há o contraditório, ou seja, não são contestadas pela defesa. Nesse contexto, a gente conhece o sistema de Justiça brasileiro e sabe que dentro do inquérito policial se cometem muitas ilegalidades e que muitas vezes acabam contaminando o juiz”, afirma Lozano.
O docente explica que o inquérito policial ocorre na fase pré-processual, quando se busca informações para o titular da ação penal, como o Ministério Público e particulares em determinados casos. É somente na fase judicial em que surgem as provas: quando os princípios constitucionais do contraditório e da ampla defesa devem ser respeitados. Logo, há uma diferença entre elementos e provas quanto ao momento em que são colhidos e seu valor probatório no processo.
De acordo com o artigo 155 do Código de Processo Penal, “o juiz [de instrução e julgamento] formará sua convicção pela livre apreciação da prova produzida em contraditório judicial, não podendo fundamentar sua decisão exclusivamente nos elementos informativos colhidos na investigação, ressalvadas as provas cautelares, não repetíveis e antecipadas”.
“Atualmente, como não há juiz de garantias, muitas vezes o juiz acaba se contaminando durante no inquérito já direcionando a sua atuação, ainda que inconscientemente, para uma condenação, fazendo perguntas com base nos elementos colhidos no inquérito”, reforça Lozano.
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O advogado, entretanto, traz uma crítica à decisão do STF de retirar do juiz de garantias a função de decidir sobre o oferecimento da denúncia, obrigação que estava prevista na lei aprovada em 2019. A maioria dos ministros, no entanto, entenderam que a atuação do juiz de garantias deve terminar com o oferecimento da denúncia, ou seja, sem analisar se deve ser aceita ou não.
“O STF está adotando o entendimento que é absurdo e é contrário ao que a lei diz. O STF entende que o juiz de garantias atua até o oferecimento da denúncia, ou seja, quem vai receber a denúncia e falar se é cabível ou não é o juiz que vai julgar o caso. Isso é uma excrescência do ponto de vista processual, porque se o objetivo é manter a imparcialidade do julgador, esse julgador não deve receber a denúncia, mas apenas julgar, porque senão vai ter contato com os elementos do inquérito que não foram trazidos respeitando-se o contraditório.”
Votos dos ministros
Somente o ministro Luiz Fux votou contra a constitucionalidade da medida. O magistrado propôs que a implementação do juiz de garantias fosse opcional, mas nenhum colega o acompanhou. O ministro Luís Roberto Barroso, o primeiro a votar, afirmou que o instrumento de juiz de garantias aparece para auxiliar na formatação de um direito penal sério e moderado. Segundo o ministro, o sistema atual é “extremamente manso com a criminalidade dos ricos, do colarinho branco, inclusive com a apropriação privada do Estado”.
“O sistema punitivo brasileiro tem uma ambiguidade. Ele é excessivamente punitivo de um lado e excessivamente leniente de outro. Nós oscilamos entre punitivismo e impunidade. E o punitivismo e a impunidade costumam ter classe social e cor”, disse Barroso.
Na mesma linha, o ministro Gilmar Mendes afirmou que o juiz de garantias traz a imparcialidade do magistrado criminal, a presunção de inocência e o controle da legalidade. Mendes citou “falhas” do Judiciário e mencionou as conversas da Vaza Jato a escândalos como os das operações Carne Fraca e Ouvidos Moucos.
Ele lembrou o suicídio do reitor da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC) Luiz Carlos Cancellier de Olivo, após ser preso pela Polícia Federal (PF) no âmbito da Operação Ouvidos Moucos. A corporação investigava desvio de dinheiro de programas de ensino à distância na UFSC.
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“Quem acha que tudo isso é normal e que não são necessárias reformas estruturantes para evitar a repetição desses escândalos, certamente não está lendo a Constituição e nem conhece o nosso Código de Processo Penal”, disse Gilmar Mendes eu seu voto.
O ministro Dias Toffoli concordou com Gilmar Mendes e afirmou que “o agente público que agiu com dolo deve e pode responder diretamente a quem ele causou dano, como em um caso de suicídio. Essa família merece ser indenizada, não pelo Estado, mas por aqueles que fizeram esse dano. Temos que repensar essa jurisprudência”.
Os ministros analisaram quatro ações que apontaram o juiz de garantias como um mecanismo inconstitucional, propostas pelos partidos PSL (hoje União Brasil), Podemos e Cidadania e pelas entidades Associação dos Magistrados Brasileiros (AMB), Associação dos Juízes Federais do Brasil (Ajufe) e Associação Nacional dos Membros do Ministério Público (Conamp).
Tramitação no Congresso Nacional em 2019
A instituição do juiz de garantias foi aprovada pelo Congresso Nacional dentro do Pacote Anticrime, proposto pelo então ministro da Justiça e Segurança Sergio Moro. O tema em particular, no entanto, não estava no texto original do projeto, mas foi incluído pelos deputados federais Margarete Coelho (PP-PI) e Paulo Teixeira (PT-SP), atual ministro do Desenvolvimento Agrário e Agricultura Familiar.
Na ocasião, Teixeira afirmou que o Brasil ainda é um dos poucos países que não adotou o juiz de garantias. “É extremamente oportuno e importante que aprovemos esse tema aqui hoje. É a reestruturação da Justiça brasileira para garantir a imparcialidade”, afirmou. Ele acrescentou que ninguém pode ser julgado por um juiz parcial. “O Parlamento inova e dá sua contribuição própria para as propostas dos dois juízes”, disse.
Mesmo com forte pressão de parlamentares bolsonaristas, a emenda à proposta foi aprovada. “Não quero nem validar nem compactuar com o que está acontecendo aqui neste grupo de trabalho, que não representa o pensamento do PSL, nem do governo, nem das ruas, que pediram o pacote anticrime”, disse a deputada federal bolsonarista Carla Zambelli (PL-SP) à época.
Fonte: Brasil de Fato/ BdF.